quarta-feira, 9 de março de 2011

Por Trás do Pôr-do-Sol

Eu fechei as janelas da sala com medo de escorregar nas poças de água que se acumularam por perto. A chuva hoje me pegou de surpresa. Há tempos que o calor era infernal por aqui e nem uma gota caia do céu. Fiquei observando através da janela de vidro grande e de correr, em pé, com os braços cruzados e cara de menino que nunca viu a fúria da natureza.

O vento forte invadiu a sala pelas frestas das janelas e espalhou com ele um cheiro forte de terra molhada, ele balançava as janelas fazendo muito barulho, mas não assustava tanto quanto os raios que cortavam e relâmpagos que iluminavam céu. Era lindo ver as gotas iluminadas pela luz dos postes caindo e mudando de direção com o vento. A janela cheia de gotículas que escorriam lentamente davam textura à moldura da rua de minha casa. A rua escura e povoada de um vigia que com capa de chuva azul claro, assobiava uma música desconhecida.

Sentei em meu sofá de couro antigo e escuro, apenas um abajur à meia luz iluminava o local. Do lado uma mesinha com coisas jogadas por cima: Um chaveiro, alguns anjinhos forjados em prata, um cinzeiro prata com detalhes de flor de girassol e um porta-retrato. Peguei o porta-retrato por um instante para olhar, eu não gostava daquela foto: Era uma foto antiga de um casal de velhos, andando de mãos dadas numa praia, de costas para o fotógrafo e em direção ao pôr-do-sol. Os tons alaranjados e avermelhados eram intensos, a areia da praia molhada formava espelhos d'agua que refletiam todas as cores misturadas com as sombras do casal e dos coqueiros. Aves escuras voavam em direção ao sol, era estranho, parecia que tudo se convergia em direção ao grande sol que estava a se esconder.

Sempre perguntei à Laura o motivo de manter aquela foto alí, não era uma foto nossa, muito menos de alguém que nós conhecêssemos. Ela respondia que um dia eu conseguiria ver, que eu entenderia a simples mensagem, a metáfora do pôr-do-sol. Afinal, seria o que aquela foto? "-Não existem metáforas por trás do pôr-do-sol. Ele apenas se põe!" eu pensava resmungando.

Abri o porta-retrato, eu estava decidido a me desfazer daquela foto. Retirei-a com cuidado, e antes de pôr sobre a mesa, percebi que tinha algo escrito no verso: "- Amado Miguel, o verdadeiro amor é como o poer e o nascer do sol: nós podemos achar um dia que ele acabará, que a escuridão chegará e tomará conta de tudo e isto talvez seja definitivo, mas ele sempre renascerá como cada amanhecer. 18/03/1994".

Um aperto forte tomou conta do meu peito, não consegui segurar a tempo algumas lágrimas que escorregaram dos meus olhos. Como eu podia ser tão insensível? Coloquei de novo a foto no porta retrato e o deixei alí. Fiquei olhando-a por horas com muita dor e saudade até cair em sono profundo.

5 comentários:

  1. Seu Miguel, existe muito no passado que teríamos vontade de reconstruir, mas o que nossos pés deixaram para trás não merece atenção além da boa saudade e do aprendizado.

    Escrevendo muito!
    Abraço!

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  2. Seu Miguel, eu não conheço o senhor, e quem me indicou seu blog foi Hélder, que é meu amigão, desde então fico visitando sempre pra ver se tem texto novo. O senhor escreve realmente muito bem, e seus textos mexem muito comigo... não consigo segurar o arrepio e, lendo esse último, também não
    consegui segurar a tempo algumas lágrimas.

    Parabéns mesmo pelos textos, eles são ótimos e estão cada dia melhores! Abraço

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  3. Seu Miguel, também não conheço o senhor, e leio seus textos pela mesma teia que uniu Hélder, Alice e eu. Devo confessar que deixo de sentir minhas pernas ao ler o senhor. Acho que posso dizer que "leio o senhor" aqui, afinal, seus textos são, como poucos sabem ser, o autor em si.

    Escrevendo muito!!
    Abração!

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  4. Obrigado pelos comentários. É bom saber que o que sinto e escrevo de minhas memórias e passado causa tamanho reconhecimento.

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  5. Ultimamente, tenho ido muito observar o pôr-do-sol no farol da Barra, a paisagem me deixa sem palavras, mas minha mente não se cala diante de tanta beleza. Muito plausível essa observação de Laura. Não há que ser permanecer o mesmo, "não nos banhamos duas vezes no mesmo rio", já diria Platão. Mas nesse processo de mudanças, permanece o que é verdadeiro... não necessariamente da mesma forma, assim como o Sol, mesmo que ele se esconda num dia nublado, continuará existindo.

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