O barulho da campainha livrou-me
do transe repentino. Parado, olhando para as prateleiras vazias da geladeira e
sem qualquer pensamento fixo, despertei de um estado de inconsciência. Há muito
ninguém batia à porta. Cheguei a testar a campainha algumas vezes, ligar para
meu próprio telefone para ver se estava com defeito. Tudo em ordem.
Corri para a porta principal com
certa ansiedade. Havia de ser Laura. Desde que terminamos, ela desaparecera da
minha rotina. Levei tempo para acostumar a dormir sozinho, mais difícil ainda foi
superar o vazio das típicas tardes de domingo. Mulher nenhuma é tão forte a ponto
de terminar um relacionamento e não insistir em uma última briga, um último “Vá
para o inferno”. Existia algo de errado em Laura, não me recordo de tanto
orgulho e força naqueles olhos.
Eu atravessei o corredor que dá
acesso à porta da frente. Aquele corredor nunca fora tão extenso, isto, pois cada
passo demorado perecia a possível impaciência de quem estava esperando do outro
lado da porta.
-Talvez seja apenas o carteiro.
Melhor arrumar ao menos o cabelo.
Tentei arrumar os cabelos no
espelho da grande estante de madeira que fica na saída do corredor.
-Estou um trapo! – pensei em voz
alta.
Demorei a me reconhecer no
espelho. Aquele estranho que me encarava com um olhar morto não poderia ser eu.
Tinha sua barba esbranquiçada e por fazer, olheiras tão profundas e escuras que
não pareciam existir noites em seu mundo. O pouco cabelo que lhe restava era
branco. Em sua face, mostrava o que era acumular o sofrimento de uma vida
amargurada. Talvez, se os rumos que a vida tomou fossem diferentes, não
pareceria existir tanta idade em seu molde.
Alcancei a porta. Subiu-me uma
tensão inesperada. Agarrei a maçaneta com força, respirei fundo e a abri
tentando fazer um careta que não assustasse a visita. Quando abri a porta,
percebi que eram apenas crianças brincando de tocar a campainha das casas e
correr do grande monstro que poderia pegá-las. Talvez tenha me transformado
nisto.
-Malditas! - Gritei fechando a
porta.
Tentei me recompor enquanto
caminhava em direção ao espelho. O olhar distante, sem direção, se perdeu de
novo por minutos. Bem, ela se foi. Com o rosto corado, segurando
fortemente suas lágrimas, abraçou-me por alguns instantes. Ela deu as costas e
caminhou. Parou alguns metros à frente, olhou para trás, tentou esboçar um
sorriso, mas mal conseguiu um de canto de boca. Apontou o nariz para frente e foi
sem olhar para trás. Eu sei, as memórias se confundem entre o presente e o
passado. Elas estão embaralhadas, mas é assim que se parece para mim.