domingo, 11 de setembro de 2011

Cristina

Há pouco acordei, o frio me impede de fazer movimentos bruscos, tudo que quero é voltar a dormir. Olhei para o relógio com preguiça, sem mexer muito o pescoço. Já não era cedo e por isso pensei em um bom motivo para não levantar da cama. No meio disso, lembrei do sonho que tive noite passada. Um sonho daqueles que você acorda sem entender o porquê de lembrar-se daquilo.

Foi com Cristina, uma mulher que eu conheci numa festa em minha casa. No dia em que a conheci, tomávamos vinho e falavamos besteiras sobre términos de relacionamentos. Ela chegou na sala e todo ar parecia correr em sua direção. Estava claro a partir daquele momento que eu estava interessado nela. Meu olhar é direto, procura o que há atrás dos olhos. Nunca consegui disfarçar meus olhares.

Cristina era alta, de corpo magro. Usava uma vestido estampado, não muito curto e de cores mistas e vibrantes. O vestido delineava bem suas curvas, dava leveza ao seu corpo esbelto. Seus cabelos pretos e encaracolados concentravam toda sua sensualidade e beleza. Os olhos escuros corriam sempre todos os cantos da sala. Lembro-me que ela pegava na taça de vinho com fina delicadeza.

Todo olhar que eu lançava, ela revidava. Eu a perseguia, não deixava escapar. Para qualquer lugar que ela olhasse, ali estava o meu olhar encarando-a. Os olhos dela eram sedentos de prazer. Eu podia pressentir que não era apenas eu quem estava me sentindo atraído. Eu precisava ser certeiro. Cristina não parecia ter feição em contos fáceis ou conversas fiadas.

Fiquei encarando-a por segundos, percebi que Cristina começava a se irritar e me afastei. Mostrei um pouco de indiferença. Fui áspero, algumas vezes, com algumas respostas mal intencionadas. Tive uma pequena oportunidade de confrontá-la e deu certo. Ela se sentia ainda mais atraída, não sabia o que fazer. Tentava não me olhar, corria os olhos de um canto para o outro da sala sempre passando milésimos de segundos através dos meus.

Ela sentiu que precisava de ar, precisava respirar, fugir de algo inevitável. Saiu e foi até a varanda do fundo da casa, onde ninguém podia vê-la e só havia o vento frio e a escuridão da noite. Acendeu um cigarro e olhou para o céu. Eu cheguei de mansinho, como quem não quer nada.

-Vai deixar seu vinho esquentar?

Ela perguntou-me se eu era algum tipo de garçon e disse que preferia quente, ousou-se ainda a insinuar que conhecia o meu tipo. Sinceramente, não existiu reação em mim por alguns segundos. Aquilo me deixou com mais vontade ainda. Eu não sabia o que pensar, não poderia evitar, de toda forma era mais forte que eu. Eu precisava tê-la naquele momento, alí mesmo na varanda.

Respondi com tom irônico que ela poderia pensar que eu fosse qualquer coisa para ela, mas que aquilo não mudaria quem sou de verdade. Ela sorriu e eu não acreditei no que vi. Seu sorriso era encantador, era convidativo à um beijo. Eu a puxei pelo braço com firmeza, o seu corpo ficou junto ao meu. Ela não sabia se olhava meus olhos ou meus lábios. Eu conseguia sentir seu coração disparado.

Beijei-a matando minha sede. As minhas mãos se encaixaram em seu pescoço, deslizaram por cima do vestido até a cintura. Joguei-a no chão. Fui beijando seu pescoço, descendo devagar. Minha barba arranhando sua pele fez com que se arrepiasse toda. Acho que ela estava tão fora de si, que nem percebeu quando lhe suspendi o vestido. Só percebeu o que estava acontecendo quando eu já estava beijando o que ela tinha de mais gostoso. Lembro-me que seu sabor era doce e apreciativo. Ela se contorcia, puxava meus cabelos, tentava não gritar. Me deliciei por alguns minutos e senti que já era hora de sentir prazer também.

Pedi para que se levantasse e que ficasse de costas para mim. Faziamos um movimento compassado, parecia que nossos corpos já se conheciam há muito tempo. O encaixe era perfeito, era simétrico. Eu a abraçava com força, minhas mãos corriam seu corpo, escorregavam sobre a pale macia, descia contornando sua cintura. As mãos dela acompanhavam por cima, as unhas grandes arranhavam meu braço causando mais prazer. Eu puxava-a pela sua cintura contra mim com força. Foi intenso, forte, prazeroso. Gozamos juntos, eu sentia sua respiração forte e ofegante, como se todo o ar não fosse o suficiente.

Voltamos para a sala, ainda com a respiração forte. Ela queria segurar minha mão, mostrar que estavamos juntos. Mas, para quê? Fiquei indeciso. Recusei, embora fosse notável uma parte do ocorrido.

sábado, 13 de agosto de 2011

Para Sempre?

O tempo voltou a correr no momento em que as nossas respirações foram retornando ao normal. Os sons externos ao quarto, enfim, puderam ser ouvidos novamente. Os sentidos que antes estavam concentrados apenas em nossos corpos, aos poucos se aguçavam enquanto contemplávamos o olhar e o riso incontido.

Deitado ao lado de Laura, não imaginava o quanto o tempo podia parar. Nada parecia importar, eu ia me deixando levar pelo toque suave da mão esquerda que no meu peito faziam movimentos cíclicos e perfeitos, ia me fazendo esquecer de tudo. Virou-se para mim com um olhar apaixonado e que de perto revelavam um sentimento que ela parecia nunca ter experimentado antes. Aquele olhar era tão intenso e envolvente, penetrava na minha alma me devorando por inteiro.

Seu corpo, entrelaçado ao meu, parecia mais vistoso à medida em que os frágeis raios de luz emitidos pelas velas, que iluminavam o quarto, iam percorrendo o corpo dela e se misturando as partes mais escondidas. Eu estava quase adormecendo quando ouvi ela sussurrar baixinho, como se tivesse medo de que eu ouvisse:

- Somos para sempre?

Tentei não me mover, nem encher os pulmões ao todo, melhor não respirar fundo para não esboçar nenhuma dúvida ou falsa reação. Na maioria das vezes, eu sou aquela pessoa que fala o que se quer ouvir. Sim, tenho essa qualidade que me impede de ser totalmente sincero. As vezes me incomoda, mas eu penso que o medo é pela culpa e cuidado em não magoar o outro. Laura dizia que se tem algo ruim para ser dito, melhor guardar para si. Apenas coisas boas devem ser compartilhadas.

- Não vai responder?

Eu realmente não sabia a resposta. Tentei imaginar coisas que duravam muito tempo, pensei em alguns exemplos; Nada é para sempre, tudo se desgasta com o tempo. A morte que separa, as arvores que são derrubadas, até as mais altas montanhas se transformam em montes de areia, já o amor, que naquele momento juramos ser eterno e sincero, um dia se acabará. Dizer isto, certamente acabaria com todo o romance do momento. Restava-me então cair em um daqueles clichês de amor:

- Sim, somos para sempre, mesmo que não dure.

Subitamente, ela encheu os pulmões de ar até não caber mais e num movimento só, esvaziou-os dizendo em seguida:

-Você é um péssimo mentiroso!

sábado, 23 de julho de 2011

O menino na galinhota

Num lugar muito movimentado, onde todo tipo de gente circulava, o foco do meu olhar sobre ele mudava a todo momento. Sentado na galinhota, ia carregado por todo o terminal. Ele era compulento, a pele morena, estava descalço, vestido apenas por uma bermuda, com as pernas cruzadas, os braços gordos e bem ativos. A mãe ficava sempre ao lado da criança, segurava-lhe forte pelo braço para que não escapulisse. Parecia querer controlar a agitação do menino, enquanto o pai carregava-o e pedia dinheiro com um olhar um pouco triste e muito carente.

De longe não dava para saber ao certo o problema do pequeno. Ia estendendo a palma da mão à todos para receber as poucas moedas que as pessoas lhe ofereciam. Alguns davam o que podiam dar sem pensar duas vezes, talvez pela caridade, por pena ou pelo amor ao próximo. Outros, viravam a cara, fingiam não ver, mostrando a indiferença nossa de cada dia.

Pararam em minha frente: "-Uma moeda, senhor?", disse-me o pai. Neste momento, uma memória minha e de Luara, do tempo em que namorávamos, tomou minha mente; enquanto caminhávamos na rua à noite, vimos alguns meninos de rua. Eles estavam deitados na calçada, tentando se cobrir, se protejer do frio. Eu resmunguei à Laura: "-Esses vagabundos!". Levei um tapa na cabeça. "-São pessoas assim como você, Miguel! Eles não têm culpa se não tiveram boas oportunidades.", Laura adorava me corrigir e eu não podia fazer nada, ela parecia estar sempre certa.

O menino gritando me fez voltar à mim. Ele fazia careta, tentava levantar, se livrar das mãos da mãe. Perguntei qual o problema do pequeno e fui respondido com um simples: "-Moço, ele é muito gordo e as pernas são fraquinhas, fraquinhas! Não se aguenta em pé, o coitado! E a gente tem que cuidar dele o dia todo, não dá para trabaiar". Fiquei observando desconfiado. Seria muito comovente, se eu fosse um pouco mais inocente e tivesse um coração mais puro. Daria o quanto pudesse, porém as vezes nós simplesmente não acreditamos. Respondi olhando para o lado que não tinha nada nos bolsos.

Sem perder tempo, nem dizer nada, continuaram pedindo às pessoas que estavam mais à frente. Enquanto se afastavam, uma senhora que estava do meu lado começou a resmungar: "-Eles usam o menino para ganhar dinheiro, todo dia estão na rua!". Pensei no que Laura me falou, pensei em responder, achei melhor ficar calado, olhando o momento em que o menino conseguiu levantar; pulou do carrinho e atravessou a rua correndo. "-Viu? Besteira! É dinheiro fácil, o menino é saudável, só enrolação!" voltou à resmungar a mulher que estava do meu lado.

terça-feira, 29 de março de 2011

A Caixa em Cima do Armário

Deitei de lado sobre a cama que foi minha e de Laura pelo curto período em que ficamos juntos. Ao lado, um criado mudo decorado com a orquídea que floriu estes dias. O sono do período pós-almoço invadiu-me de uma forma inesperada. Meu corpo, um pouco mole, um pouco cansado, sentia-se desconfortável na posição em que estava.

Virei-me tentando ajustar minha coluna às molas mal articuladas. "-Esse colchão velho precisa ser queimado!", parei para pensar no que havia dito, lembrei do que minha mãe sempre dizia quando eu tinha meus vinte e poucos anos e reclamava das coisas velhas: "-Um dia você também será!", acho que ela ficava imaginando o que eu faria com ela. Eu respondia que quando eu fosse velho, meus filhos me colocariam em um asilo, ou algo do tipo, para não deixar a minha velhice perturbar ninguém. Ela sempre permanecia calada sem olhar ou mostrava-me um riso preocupado.

Olhei para cima do grande guarda-roupas mogno e vi uma caixa de madeira onde Laura costumava guardar algumas coisas pessoais. Corri até a cozinha, peguei uma cadeira, voltei arrastando-a e subi por cima dela. Alcancei a pequena caixa de madeira, peguei e a coloquei sobre a cama. Uma grossa camada de poeira cobria a superfície. Meu coração estava disparado, a pressão subiu. Fui tomado pela curiosidade de tal forma que nem pensei direito no que estava fazendo, mexendo nas coisas de Laura, será que eu poderia fazer isto?

Abri a caixa com as mãos trêmulas, dentro dela haviam fotos antigas do tempo que nos conhecemos, um colar de pérolas antigo e quebrado, um diário trancado por um pequeno cadeado dourado em formato de coração, cartas antigas, papéis amarelados, fitas e pulseiras. Examinei com cuidado cada foto com cuidado, frente e verso, me emocionei com algumas, com outras ri. Atrás das fotos, sempre palavras de muito carinho e atenção. Não sei o porque, mas ela sempre teve uma psicose com datas, não deixava nada sem marcar.

Levantei e olhei para a cama. Estava pequena para tantas fotos e objetos espalhados por cima dela. Tantas recordações só provam que o tempo passou, foi implacável, não perdoou os nossos descuidos, as vezes que deixamos de aproveitar a vida. E agora, o que restou além da saudade dos bons tempos? Um velho que mais do que nunca repete a frase que sua mãe dizia: "-Um dia você também será!".

Quando despertei dos meus pensamentos, ainda olhando em pé para a cama, o diário destacava no meio de todos aqueles objetos antigos. Fiquei olhando-o, tentando pensar em algo. Queria abri-lo, peguei um martelo para quebrar o cadeado, mas não consegui. Coloquei-o em cima do criado mudo. Eu imaginava o que poderia ter alí, quais segredos Laura poderia ter deixado escrito? Resolvi que não o abrirei. Tentarei resistir, mesmo sabendo que a curiosidade sempre é mais forte do que as ações do meu corpo.

terça-feira, 22 de março de 2011

Uma Velha Lembraça

Uma dor forte apertou-me o peito hoje. Ela veio do nada, silenciosa. Começou a crescer de forma angustiante e, sem avisar, tomou meu corpo todo. As vezes eu penso que superei ter perdido Laura, mas a perda nunca foi superada. Acho até que nunca será, pois sempre haverá o vazio, sempre me culparei por não ter dito o último "Eu te amo!". Sim, eu sei que eu não posso me culpar pelo passado. Afinal, o que passou, passou? Mas, e sobre as tantas vezes que esqueci de dizer o que eu realmente sentia? Perdi pessoas importantes sem antes dizer uma palavra de carinho. Sem pedir perdão, pisar na minha vaidade, esmagar meu orgulho, esquecer o trabalho, achar um tempo qualquer e mostrar meu verdadeiro querer, a minha presença.

Estes dias frios parecem ser dias calmos e agradáveis, dias em que qualquer agasalho parece poder aquecer meu corpo. Eles não me aquecem. Escondem em si uma falsa promessa de calor e conforto. São dias em que as horas insistem em não passar, nunca se sabe se é manhã ou tarde. Abro a janela da sala de estar e vejo um céu cinza, morto, sem cores, que muito me entristece. Fico na esperança de uma brecha de sol aparecer, do céu azul brilhar.

Vejo as horas no grande relógio de parede da sala-de-estar e me perco no tempo encarando a porta da frente, que dá acesso a varada da casa. Fico esperando a porta abrir, esperando Laura chegar em casa, insistindo em olhar a porta que nunca abre. Sento na varanda da frente onde o vento frio é intenso. Duas poltronas, dois lugares, apenas um ocupado. A falta aperta a todo momento. Como lembrar dela e não sorrir? Como não lembrar da pessoa amada? Pequenas coisas, as mais bobas, ela está lá.

Com os olhos fechados, só me vem à mente uma cena antiga, porém muito nítida: Numa praia, o tempo estava nublado. Laura, de biquíni preto e envolta por uma manta azul, corre com medo das minhas tentativas de cobri-la de água, mostra o que reflete em seu olhar e sorriso: paz de espírito, conforto interior, um amor que a preenche o corpo todo. Eu, muito bobo, com brincadeiras de criança, corro atrás dela e a alcanço em seguida. Coloco-a em meus ombros, ela ri alto, pede para que eu a coloque no chão, dá tapas em minhas costas. Com todo cuidado de quem carrega diamantes, coloco-a na beira do mar, vou junto com ela, meus braços envolvem-na o corpo todo, sinto o frio da água do mar molhando minha pele. De frente um para o outro, salgados e nos olhando com tremenda paixão, temos neste momento uma única certeza: Nós nos amamos.

Despertar de um sonho bom, abrir os olhos, não é fácil. Fico me perguntando se a qualquer momento vou acordar deste pesadelo. Estou sonhando quando fecho os olhos ou estou tendo um pesadelo quando abro eles? Dias frios em que o calor está ausente, em que a dúvida me consome, a ausência me angustia, o peito dói. Uma dor que eu tenho certeza, remédio nenhum poderá curar.

domingo, 20 de março de 2011

O Primeiro Encontro

As várias visitas ao bar onde Laura trabalhava nos renderam boas conversas. Na medida do possível, apesar de eu ter receio por estar atrapalhando-a e de nossas conversas serem sempre interrompidas por clientes apressados ou pelo patrão irritado. Decidi que pelos olhares que trocávamos, ela não poderia recusar um convite despretensioso. Chamei-a então para ir à um parque que tinha acabado de chegar à cidade e que todos estavam falando bem.

Era a primeira sexta-feira de maio, os dias ainda eram quentes, já as noites sempre se envolviam por uma brisa fria e agradável. Marcamos de nos encontrar às 7 no parque perto da roda-gigante. Cheguei cedo, estava ansioso. Eu olhava em todas as direções insistindo em encontrá-la no meio daquela multidão. Quando à vi, de botas marrom, calça e blusa pretas, colar e brincos de ouro, meu coração disparou de forma descontrolada, não sei se pelos nossos olhares terem se cruzados no meio de tanta gente ou se pela incerteza do porvir.

Laura chegou perto de mim e com um olhar singelo disse: "-É uma linda noite, não?" tudo se abafou ao redor de nós dois, turvou-se diante dos olhos dela, eu não conseguia ouvir mais nada, apenas olhava para ela. Esbocei o meu melhor sorriso e a cumprimentei: "-Sim, tão bela quando você.". Ela sorriu ainda mais e respondeu: "-Você e sua habilidade de me deixar sem graça.".

Caminhamos pelo parque conversando, não me recordo do que falávamos, ou melhor, do que Laura falava, eu apenas concordava balançando a cabeça, fixando os olhos na boca dela. Laura estava deslumbrante. Paramos perto do pula-pula, encostamos na grade de proteção observando as crianças dentro, fiquei de frente para Laura e puxei-a para perto de mim pelo braço: "-Olha, eu tenho que confessar que não sou bom com palavras, mas eu estou muito encantado por você.", ela olhou-me desconfiada e disse: "Miguel, eu conheço de longe a tua fama. Essas palavras baratas não me compram.".

Droga, quem havia dito maldades ao meu respeito? Tentei disfarçar, então disse em tom um pouco irônico, um pouco sarcástico que ela poderia acreditar em qualquer boato e pensar o que quisesse de mim, mas isto não mudaria quem realmente eu sou. Eu sabia que ela não se importava com isto, caso contrário não teria aparecido. Ela olhava para os meus lábios e olhos, não resisti: puxei-a com força e a beijei.

Durante o nosso primeiro beijo, o tempo parou diante de nós dois. Lembro que não nos importamos, pois nos sentíamos sozinhos, mas estávamos cercados de pessoas. Acho que se Laura estivesse viva hoje, ela se recordaria de cada detalhe daquela noite melhor do que eu e certamente discordaria da ordem das coisas.

domingo, 13 de março de 2011

Felicidade Repentina

O frio da manhã cinzenta não me intimidou ao sair de casa. É lindo ver que o inverno se aproxima, que as pessoas ficarão mais bem vestidas, charmorsas e que poderei me sentir melhor, mais disposto. Andei pelo canteiro do jardim de minha casa bem devagar, examinando cada folha jogada ao chão. Algumas formigas vermelhas e grandes insistiam em destruir o meu pequeno roseiral. Malditas! Nunca tive paciência com elas. Constatei que tenho que cuidar melhor das plantas, para evitar que as formigas façam o seu trabalho, da cerca branca de tábuas juntinhas, pois os cupins insistem em devorá-la e do gramado, que insiste em de folhas se decorar.

Segui o rastro lento das formigas; um pouco espesso, em duplo sentido, andando, rápido, iam e voltavam desafiando o gramado cheio de folhas. No trajeto, tocavam-se de frente. O que será que diziam umas às outras? Será que vai chover? Corre que o velho está com o veneno? Adiante o serviço, corra! Trabalhe! Ajude! Para o bem de todas, pois o tempo é curto e temos que aproveitar, antes da chuva, antes do inverno, antes que o ambiente se torne ainda mais áspero, corra e trabalhe!

Fui andando, atravessando o jardim e observando o quanto fui descuidado, estava ele todo arrasado. Não é difícil imaginar o porquê da minha vida estar assim. Durante anos descuidei do meu jardim, deixei de plantar, de colher e, principalmente, de evitar que as malditas formigas o destruissem. Tudo parecia que ia morrendo, se perdendo no descuido da minha falta de atenção e zelo.

Voltei rápido pelo caminho de pedras que liga todo o quintal à casa. Peguei o veneno e voltei um pouco irritado, agachei lentamente, pois os joelhos não são mais tão fortes e o risco de cair se torna mais eminente com o passar dos anos. Examinei o local por onde elas passavam e antes de aplicar o veneno, pensei ter visto um vulto colorido e meio distante, um pouco turvo e desfocado.

Algo diferente e em contraste com toda aquela bagunça. Levantei o olhar meio discreto e incrédulo e vi: Uma flor! Uma simples flor de orquídea em tons azul e lilás nas bordas e um pouco alaranjado ao centro. Uma flor que só havia florido uma vez, desde o dia que eu a comprei, e agora desabrochava em meu jardim descuidado.

Levantei-me devagar olhando-a de frente, fechei os olhos e sorri por alguns instantes. Levantei a cabeça levemente, senti o vento frio e áspero raspar o meu rosto. Senti o sol, um pouco tímido, um pouco fraco, ainda lutando contra as nuvens que insistiam em não deixá-lo iluminar o jardim. Senti uma paz interior, que há muito eu não sentia. Uma calmaria dos pequenos barcos que repousam à beira-mar ao amanhecer. Uma tranquilidade, uma felicidade repentina que me fez começar a reparar todo o tempo perdido.


quarta-feira, 9 de março de 2011

Por Trás do Pôr-do-Sol

Eu fechei as janelas da sala com medo de escorregar nas poças de água que se acumularam por perto. A chuva hoje me pegou de surpresa. Há tempos que o calor era infernal por aqui e nem uma gota caia do céu. Fiquei observando através da janela de vidro grande e de correr, em pé, com os braços cruzados e cara de menino que nunca viu a fúria da natureza.

O vento forte invadiu a sala pelas frestas das janelas e espalhou com ele um cheiro forte de terra molhada, ele balançava as janelas fazendo muito barulho, mas não assustava tanto quanto os raios que cortavam e relâmpagos que iluminavam céu. Era lindo ver as gotas iluminadas pela luz dos postes caindo e mudando de direção com o vento. A janela cheia de gotículas que escorriam lentamente davam textura à moldura da rua de minha casa. A rua escura e povoada de um vigia que com capa de chuva azul claro, assobiava uma música desconhecida.

Sentei em meu sofá de couro antigo e escuro, apenas um abajur à meia luz iluminava o local. Do lado uma mesinha com coisas jogadas por cima: Um chaveiro, alguns anjinhos forjados em prata, um cinzeiro prata com detalhes de flor de girassol e um porta-retrato. Peguei o porta-retrato por um instante para olhar, eu não gostava daquela foto: Era uma foto antiga de um casal de velhos, andando de mãos dadas numa praia, de costas para o fotógrafo e em direção ao pôr-do-sol. Os tons alaranjados e avermelhados eram intensos, a areia da praia molhada formava espelhos d'agua que refletiam todas as cores misturadas com as sombras do casal e dos coqueiros. Aves escuras voavam em direção ao sol, era estranho, parecia que tudo se convergia em direção ao grande sol que estava a se esconder.

Sempre perguntei à Laura o motivo de manter aquela foto alí, não era uma foto nossa, muito menos de alguém que nós conhecêssemos. Ela respondia que um dia eu conseguiria ver, que eu entenderia a simples mensagem, a metáfora do pôr-do-sol. Afinal, seria o que aquela foto? "-Não existem metáforas por trás do pôr-do-sol. Ele apenas se põe!" eu pensava resmungando.

Abri o porta-retrato, eu estava decidido a me desfazer daquela foto. Retirei-a com cuidado, e antes de pôr sobre a mesa, percebi que tinha algo escrito no verso: "- Amado Miguel, o verdadeiro amor é como o poer e o nascer do sol: nós podemos achar um dia que ele acabará, que a escuridão chegará e tomará conta de tudo e isto talvez seja definitivo, mas ele sempre renascerá como cada amanhecer. 18/03/1994".

Um aperto forte tomou conta do meu peito, não consegui segurar a tempo algumas lágrimas que escorregaram dos meus olhos. Como eu podia ser tão insensível? Coloquei de novo a foto no porta retrato e o deixei alí. Fiquei olhando-a por horas com muita dor e saudade até cair em sono profundo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Laura

Conheci Laura de forma inusitada, não tinha como não me apaixonar. Eu estava indo para um bar perto da praça dos Patos. Era uma tarde cinza de sábado, daquelas um pouco mórbidas que o vento sopra devagar e com preguiça. Estava quase anoitecendo e o frio era intenso, há muito que o sol não dava as caras. Eu passei pela praça andando distraído em meus pensamentos, vi algumas moças sentadas em alguns bancos perto da ponte que dá acesso ao outro lado da praça dos Patos. Elas riam e se distraiam. Provavelmente comentando algo sobre os rapazes que ficavam à observá-las.

Entrei no bar da Tina. Um barzinho famoso e muito bem frequentado. Peguei uma cerveja e sentei num lugar estratégico. Olhei o bar todo por vezes, mulher nenhuma me atraia. Estranho, não tinha reparado na moça que me serviu a cerveja. Não a conhecia, mas isso não era motivo para ser fria e impaciente. Fiquei sem entender, pensei alguns minutos nela. Bem, talvez tenha sido pela quantidade de homens que ficava a importunando à beira do balcão com piadinhas e cantadas sem promessa de um amanhã. Isso irrita qualquer uma.

Minha cerveja acabou, as mesas estavam cheias demais e os poucos garçons não davam conta de tanto pedido. Algumas pessoas reclamavam, acho que tudo tinha acabado. Voltei ao balcão imaginando como seria encarar de novo aquela pessoa arrogante. Alguns homens se aproximavam a todo momento perguntando pelas bebidas e tentando alguma chance com ela. Escutei de longe, eram as mesmas conversas sempre: "Vamos sair daqui depois do seu expediente?".

Encostei no balcão, ela me olhou com indiferença, um olhar repugnante. " -Mais uma cerveja, por favor.", disse à ela com tom firme. " -Acabou!", respondeu ela. " -Tá, então uma dose dupla de whisky com água de côco." mais impaciente ainda. Ela respondeu com um pouco de intolerância: " -Não tem!", " -Tem água?", "Não!". "Nem da torneira?", " -Não!!!", dei um daqueles sorrisos de canto e boca e tornei a perguntar: " -E seu telefone? Tem?". Neste momento ela parou, aquilo quebrou tudo dentro de si. O escuto anti-cafajestes havia sido rompido. Não era mais uma conversa fiada de bêbado querendo sexo fácil. Era algo real, algo sincero. Ficou me encarando com seus olhos cor de mel grandes e arregalados, os lábios finos entreabertos, o pescoço levemente inclinado e as mãos soltas.

Seu patrão, vendo a cena de longe, veio em direção e perguntou: "Laura, algum problema?", "Não, está tudo bem." respondeu ainda sem graça e em seguida perguntou-me: "Você está falando sério?", e eu respondi: " -Não, não estou. Eu quero uma cerveja, tem?", acho que a irritei mais ainda. Ela ficou sem acreditar, logo quando eu consegui quebrar o escudo protetor, recuei sem pensar. Na verdade, eu nem sabia o que estava fazendo, as palavras saíram involuntariamente. Acho que me apaixonei sem saber, nem perceber. Aquela atração era involuntária. Anos mais tarde Laura me contou que naquele dia, ela teve vontade de pular o balcão e me matar.

terça-feira, 1 de março de 2011

Beatrice

Ontem eu caminhei pela rua vagarosamente me perdendo em meus pensamentos. Meus passos são curtos e lentos, reconheço que eles não são mais os mesmos, não denotam mais tanta confiança. O medo de cair assombra as minhas pernas, não tão mais vigorosas. Andei bastante para um velho de 74 anos. Quando se envelhece, cada caminhada torna-se uma maratona, ainda mais com estas manhãs quentes. A luz do sol era intensa e as arvores não balançavam tanto. As pessoas iam e voltavam, as vezes eu tinha a impressão de que passavam por mim umas três vezes.

Cheguei num restaurante recém aberto. Era um restaurante simples, com cortinas roxas e quadros antigos nas paredes, cadeiras e mesas de madeira envernizadas, toalhas de mesas rendadas e jarros com flores amareladas. Uma música meio brega animava o local. Sentei-me, peguei o cardápio e esperei ser atendido pela moça alta de pernas grossas. Ela era loira de olhos castanhos, andava de forma elegante e distribuía um sorriso carismático para todos os lados do pequeno salão.

Fiquei admirando a linda garçonete por segundos até ser interrompido por uma pequena menina. Tinha olhos grandes e escuros, cabelos bagunçados, usava roupas velhas e mal lavadas, carregava consigo nos braços frágeis uma caixa cheia de doces. " -Tio, compra um?", disse ela de forma natural. Tio? Há muito que eu não era mais tio. Respondi que não, que era para ela estar na escola e não vendendo doces na rua. Pensei que talvez tinha sido rude com ela. Ela baixou a cabeça e tornou a perguntar: " -Então paga um almoço pra mim?", neste instante a garçonete chegou tentando afugentar a pequena.

Uma dor correu pelo meu peito, eu tinha sido muito rude. " -Pode deixar, ela está comigo", disse prontamente à garçonete. Pedi a menina que se sentasse e fiz o pedido para os dois. A menina reclamava que não gostava de comer verduras e nem salada. " -Abusada, vai comer tudo e sem reclamar!", " -Tá bom tio", respondeu com a cara emburrada. Ela apoiou o queixo nas mãos sobre a mesa e ficou me observando atentamente, era irritante aquele olhar. Perguntei á ela o seu nome, me revelou sorridente: -É Beatrice, tio.

Perguntei à ela o motivo de estar vendendo doces. Ela me contou com tanta naturalidade que a mãe saiu do emprego de doméstica para cuidar da avó que teve derrame, que tinha um irmão especial e ela era a mais nova. Disse-me sem esboçar rancor que dançava ballet na escola, mas que alguém tinha roubado suas sapatilhas, sem elas não poderia dançar, e que uma parte do dinheiro ajudava em casa, já a outra guardava para comprar novas sapatilhas. Senti um aperto ainda mais forte. Acho que só a senti magoada quando perguntei pelo seu pai. " -Bebia demais tio, batia muito em minha mãe e em mim, foi embora de casa", disse olhando para o jarro com um olhar desolado e distante.

Calei-me. Não quis perguntar mais nada, pois aquilo foi um soco no meu queixo. O silêncio constrangedor tomou conta da mesa, nem a música brega se ouvia mais. Eu me achando com problemas, vivendo meu mundo de amarguras e rancor pelo que a vida fez comigo e com minha amada Laura, enquanto uma menina de talvez dez anos estava vivendo de forma tão dura sua juventude. Os pratos chegaram e comemos sem falar mais nada. No final, paguei a conta e dei à ela tudo o que tinha na carteira. Beatrice olhou-me e com um sorriso singelo agradeceu. Voltei andando pelo mesmo caminho, um turbilhão de coisas em minha mente e aqueles pequenos passos, a idade, o calor e a distância até minha casa não faziam mais diferença.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Início

Hoje eu acordei perto das 5 da manhã. Há alguns dias meu sono surpreende o meu relógio-despertador. Andei pela casa vazia até a varanda da frente. Vi a escuridão tranquila de minha rua. Respirei fundo. Voltei pela sala examinando a luz que aos poucos começava a refletir. Nada além dos meus passos curtos e cautelosos. Silêncio! Alguns passos vazios do lado de fora, alguns movimentos alheios à mim.

Entrei no meu escritório de paredes brancas e prateleiras empoeiradas. Precisando dar uma boa faxina. A máquina de escrever já não me serve mais, troquei há pouco tempo por este computador. Os meus cadernos de páginas amareladas começam a desfigurar e se perder no morfo. Sentei-me e olhei atentamente à minha mesa. Pouco organizada; folhas de rascunho à direita, mais na frente um porta-retrato, daqueles antigos, com uma foto de Laura, uma pequena luminária e o computador.

Senti uma necessidade estranha de escrever. Desde à morte de Laura, tomei-me de uma tristeza e resolvi que nunca mais tornaria a tecer minhas palavras em lugar algum. Esbocei um sorriso quando veio à mente uma velha frase que Laura costumava me dizer: "Miguel, nunca diga nunca!". Confesso que a dor ainda é forte, mesmo depois de seis meses. Não quero falar muito sobre isso agora. Ainda dói. Cada domingo é pior do que o outro, hoje não está sendo diferente.