terça-feira, 1 de março de 2011

Beatrice

Ontem eu caminhei pela rua vagarosamente me perdendo em meus pensamentos. Meus passos são curtos e lentos, reconheço que eles não são mais os mesmos, não denotam mais tanta confiança. O medo de cair assombra as minhas pernas, não tão mais vigorosas. Andei bastante para um velho de 74 anos. Quando se envelhece, cada caminhada torna-se uma maratona, ainda mais com estas manhãs quentes. A luz do sol era intensa e as arvores não balançavam tanto. As pessoas iam e voltavam, as vezes eu tinha a impressão de que passavam por mim umas três vezes.

Cheguei num restaurante recém aberto. Era um restaurante simples, com cortinas roxas e quadros antigos nas paredes, cadeiras e mesas de madeira envernizadas, toalhas de mesas rendadas e jarros com flores amareladas. Uma música meio brega animava o local. Sentei-me, peguei o cardápio e esperei ser atendido pela moça alta de pernas grossas. Ela era loira de olhos castanhos, andava de forma elegante e distribuía um sorriso carismático para todos os lados do pequeno salão.

Fiquei admirando a linda garçonete por segundos até ser interrompido por uma pequena menina. Tinha olhos grandes e escuros, cabelos bagunçados, usava roupas velhas e mal lavadas, carregava consigo nos braços frágeis uma caixa cheia de doces. " -Tio, compra um?", disse ela de forma natural. Tio? Há muito que eu não era mais tio. Respondi que não, que era para ela estar na escola e não vendendo doces na rua. Pensei que talvez tinha sido rude com ela. Ela baixou a cabeça e tornou a perguntar: " -Então paga um almoço pra mim?", neste instante a garçonete chegou tentando afugentar a pequena.

Uma dor correu pelo meu peito, eu tinha sido muito rude. " -Pode deixar, ela está comigo", disse prontamente à garçonete. Pedi a menina que se sentasse e fiz o pedido para os dois. A menina reclamava que não gostava de comer verduras e nem salada. " -Abusada, vai comer tudo e sem reclamar!", " -Tá bom tio", respondeu com a cara emburrada. Ela apoiou o queixo nas mãos sobre a mesa e ficou me observando atentamente, era irritante aquele olhar. Perguntei á ela o seu nome, me revelou sorridente: -É Beatrice, tio.

Perguntei à ela o motivo de estar vendendo doces. Ela me contou com tanta naturalidade que a mãe saiu do emprego de doméstica para cuidar da avó que teve derrame, que tinha um irmão especial e ela era a mais nova. Disse-me sem esboçar rancor que dançava ballet na escola, mas que alguém tinha roubado suas sapatilhas, sem elas não poderia dançar, e que uma parte do dinheiro ajudava em casa, já a outra guardava para comprar novas sapatilhas. Senti um aperto ainda mais forte. Acho que só a senti magoada quando perguntei pelo seu pai. " -Bebia demais tio, batia muito em minha mãe e em mim, foi embora de casa", disse olhando para o jarro com um olhar desolado e distante.

Calei-me. Não quis perguntar mais nada, pois aquilo foi um soco no meu queixo. O silêncio constrangedor tomou conta da mesa, nem a música brega se ouvia mais. Eu me achando com problemas, vivendo meu mundo de amarguras e rancor pelo que a vida fez comigo e com minha amada Laura, enquanto uma menina de talvez dez anos estava vivendo de forma tão dura sua juventude. Os pratos chegaram e comemos sem falar mais nada. No final, paguei a conta e dei à ela tudo o que tinha na carteira. Beatrice olhou-me e com um sorriso singelo agradeceu. Voltei andando pelo mesmo caminho, um turbilhão de coisas em minha mente e aqueles pequenos passos, a idade, o calor e a distância até minha casa não faziam mais diferença.

Um comentário:

  1. "-Abusada, vai comer tudo e sem reclamar!" (eu ri)

    Existem muitas Beatrices por aí, talvez na mesma ou em situação pior que essa...

    Seu Miguel, pare de reclamar e ser rabugento, vá viver com qualidade! E claro, continue escrevendo.

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